3 de nov. de 2016

É o Fim do Software Livre no Governo Federal?

Eu responderia com "algum dia SL começou no Governo Federal?", mas estaria pondo a carroça à frente dos bois.

Vamos do começo: sou formado em Física, pela Unicamp e trabalho no SERPRO, o Serviço Federal de Processamento de Dados, desde 2005. Passei a gostar (=não-racional) de Software Livre assim que eu descobri o que era: uma opção de software normalmente mais poderoso e estável que todas as outras. No começo foi uma relação platônica, a distância: eu não tinha o conhecimento suficiente para usar, ou não tinha um software adequado ao que eu queria fazer.

Assim, quando entrei no SERPRO eu tive chance de participar de uma coisa chamada Comitê de Software Livre, ou CSL. Ele foi estabelecido como parte de uma estrutura maior, o Programa SERPRO de Software Livre, ou PSSL. De acordo com o memorando que estabeleceu o PSSL:


Esse documento foi emitido em 2003. A troca de comando do SERPRO ocorreu apenas em 2007. Até lá ainda era a mesma administração estabelecida pelo governo anterior, ou seja, o segundo mandato do presidente Fernando Henrique Cardoso.

Você pode argumentar que o SERPRO não é o Governo Federal, e você estará certo. Porém o SERPRO tinha um papel fundamental: alavancar a mudança por meio da evolução de seus produtos:


Volto a insistir: tudo isso estava pronto ANTES de Lula ser eleito pela primeira vez. A resolução foi oficializada em 2003, mas ela não surgiu do nada. Eu pesquisei a história do SL no governo federal e sei que há anos discutia-se sobre isso, muito antes de 2003 esse link tem um histórico, leia!)

Logo, essa é o primeiro fato largamento ignorado sobre SL na esfera pública:
A adoção de Software Livre no Governo Federal NÃO FOI ação do governo Lula, mas do Governo FHC.

Fazer Mais Com Menos

Um dos pontos positivos do Governo FHC era que, apesar de assistencialista e de esquerda, tinha um respeito inabalável pela boa governança, pela gestão com qualidade. Essas coisas não ganham eleições e por isso não era visível o esforço que se fazia para racionalizar custos e melhorar a qualidade do investimento.

Essa orientação está na raiz do PSSL - basta olhar os itens da primeira figura: reduzir custos, melhorar o nível de serviço e sua qualidade.

A idéia até então era aproveitar que SL é um produto naturalmente superior e com melhor relação custo-benefício para aumentar a rentabilidade do SERPRO, para entregar mais serviços com menos custos e mais qualidade.

NUNCA foi objetivo do PSSL fazer qualquer tipo de substituição cega, apenas por ideologia. O foco na qualidade e na economicidade era declarado de saída.

Logo, o segundo fato largamento ignorado é:
NUNCA houve a meta de trocar Windows por Linux. NUNCA, NUNCA, NUNCA. A meta era usar SL para MELHORAR O SERVIÇO PÚBLICO, não para remover um fornecedor do rol de pagamentos do estado brasileiro.

Business as Usual

Daí damos de cara com a seguinte notícia:

Temer, do PMDB, sinalizou que isso não ocorrerá mais ao instituir que os órgãos do Sistema de Administração dos Recursos de Tecnologia da Informação (SISP) têm até 11 de novembro para indicar de quais programas da Microsoft vão precisar para continuar trabalhando.

Ora, ora, ora. Vamos por partes.

Qualquer um que saiba qual é o tamanho do Governo Federal sabe que ele não funciona a toque-de-caixa, muito menos uma caixa tocada por uma única pessoa. O Governo Federal possui uma estrutura complexa, com regras, regulamentos, processos etc. etc. etc. É um treco literalmente do tamanho de uma cidade!

Uma das coisas que se faz todos os anos é programar o orçamento para o ano seguinte. Isso inclui levantar os gastos estimados, as necessidades de pessoal, material, infra-estrutura etc.

Uma dessas estimativas é compra de hardware e, consequentemente, de Software. Ora, meus caros leitores, o quase totalidade de todos os computadores do Governo Federal usados pelos funcionários públicos para seu trabalho diário - traduzindo: os PCs ou estações de trabalhos - funciona em Windows. É assim desde que o o Planalto começou a se informatizar, e vai ser assim ainda durante um tempo indefinido.

Eis, assim, o terceiro fato largamente ignorado:
Todo ano o Governo Federal pesquisa quanto vai ser gasto nos insumos para o ano seguinte, e software é um destes.
Logo, o que a notícia aventa é nada mais nada menos que o rumo regular da administração pública.

Porquê? Porque destacam um fato ordinário com tanto furor?

Veremos se essa resposta aparece em algum dos fatos largamente ignorados.

O Que é Que Maria Leva?


Ok, então até agora vimos que existe uma política de estado brasileira voltada a melhorar a qualidade do serviço público e, para isso, entende que deve ser investido no uso de SL quando interessante.

Com todo respeito ao estado, ao qual sirvo, e ao país, do qual sou um cidadão pagador de impostos: uma política boba, para dizer o mínimo.

Como é que é? Então precisa que alguém escreva "e a partir de agora vamos fazer mais com menos e sempre tentar melhorar tudo" para que o governo se mexa nesse sentido? Se até então não havia, como é que era a vida? Quais eram as prioridades? Gastar mais? Contratar mais funcionários públicos?

Entendem como é inócua essa política?
  • Se SL for mais barato e melhor, usem SL;
  • Se SL não for a melhor opção, não usem.
Pelamordedeus né?

Por aí, e pelo que está descrito no programa de SL do Governo Federal, podemos concluir com razoável certeza que NUNCA houve como meta mudar o sistema operacional das estações de trabalho, e por um motivo ridiculamente simples: seria muito mais caro do que a economia de licenças.

Esse é o quarto fato largamento ignorado:
Mudar uma base instalada de Windows para Linux - qualquer um - custaria muito caro (treinamento, serviço, suporte, tempo perdido, dificuldades, integração com o restante do mundo etc. etc. etc.), teria um enorme impacto negativo para o país e não traria praticamente nenhuma vantagem, desrespeitando frontalmente a política de SL do Governo Federal.
O que nos leva ao quinto fato largamente ignorado:
A política de SL do Governo Federal, largamente apoiada no funcionamento do SERPRO como catalisador, é irrelevante porque orienta a fazer o melhor possível.
Veja, eu pessoalmente acredito que fazer essa migração é um bom objetivo a ser perseguido. Por outro lado, eu sou visceralmente contra "fazer por fazer" ou "fazer por ideologia". A minha ideologia é a da Margaret Thatcher: estado não tem dinheiro, ele gasta dinheiro dos outros e por isso precisa ser bem gasto. Com tantas coisas por fazer, a troca de sistema operacional de estação de trabalho deveria vir no final da lista.

Como exemplo podemos citar Munique, cidade alemã, que fez essa migração. Este artigo mostra como as coisas evoluíram e conta alguns detalhes importantes - tal como o fato de a migração não ter sido motivada por custos, mas por ideologia.

A norma que instituiu o PSSL foi atualizada em 2013. Não houve nenhuma modificação significativa. Ela se tornou mais incisiva e abrange outros aspectos de administração da em dessaspresa, mas em suma continua dizendo a mesma coisa: que façamos o melhor para o país. (Insisto: sem isso, não faríamos??)

Calcanhar de Aquiles


Bom, se a meta não era trocar desktop, o que era então? Surpresa: não havia meta. Havia apenas um "direcionamento para internalização". É o mesmo problema de sempre: acreditamos, aqui no Brasil, que basta escrever uma norma ou uma lei que a realidade será magicamente alterada.

Como, infelizmente, a mudança de realidade depende de pessoas, não de tinta em papel, as boas intenções do PSSL redundaram em muito calor e pouca luz.

Esse é o fato largamente ignorado número seis:
Como nada foi feito de concreto, como não foi montado um plano, nem apontadas pessoas para executá-lo, a coisa continuou como estava, apenas agora tínhamos uma decisão em papel. Típico da mentalidade burocrática...

A maior fraqueza da política de adoção de SL era o fato de ser... uma política. Não havia nada de concreto, não havia nada de objetivo em tudo aquilo. Só uma orientação para "fazermos o melhor possível, usando SL se for melhor e mais barato".

Pelamordedeus.

A Volta dos Que Não Foram


E assim eu chego à pergunta que é o título deste post: vamos assistir ao fim do Software Livre no Governo Federal?

E a resposta, vocês hão de convir comigo, não pode ser outra: e algum dia SL começou no Governo Federal?

Não é que nada tenha sido feito, muito pelo contrário. Eu mesmo palestrei sobre SL e participei de muitas "ações" para alavancá-lo. O fato - o que de fato aconteceu - é que tudo que se discutia dentro dos comitês e reuniões e projetos era bloqueado pela realidade.

Eu não posso, por profissionalismo e lealdade, relatar nenhum dos detalhes ou analisar as falhas conceituais dos projetos em que participei, nem emitir minha opinião sobre como eu acho que deveria ter sido feito, até porque eu nunca tive nenhuma responsabilidade sobre as decisões, que vinham prontas "de cima". Eu posso compartilhar que a tônica desse debate raramente foi a redução de custos, o aumento de produtividade ou melhoria de qualidade. A tônica era sempre "evitar software proprietário".

E essa é o sétimo fato largamente ignorado:
Há muitas formas de se melhorar o lado tecnológico do Estado Brasileiro sem ter que apelar para Software Livre. Algumas são muito mais baratas e dão resultado muito mais rápido que trocar software.
E na esteira desse, o fato largamente ignorado número 8:
Software Livre não é só sistema operacional, não é só Linux. Há muitas formas de se investir em adoção de SL sem ter que partir para algo tão periférico, traumático e inócuo que é a troca do sistema operacional. Podemos começar com navegadores web, servidores de todo tipo, suíte de escritório, bancos de dados, BMPS, BI, ERP, etc. etc. etc...

Lavosier

E uma coisa que pouco se fala sobre SL é que ele não reduz custos necessariamente. Veja, raramente o custo de licenças de software é algo tão significativo que sua eliminação valha a pena. Em muitos casos é importante pagar por uma licença comercial do Software Livre para poder ter acesso a serviços imprescindíveis, tais como suporte 24x7 ou manutenções de emergência. É uma enorme irresponsabilidade subir um sistema de atendimento ao público, ao cidadão pagador de impostos, dependendo de suporte comunitário. Coisas falham, e sistemas são coisas. Imagine ficar com um serviço parado dependendo de manutenção no software que conta apenas com a boa vontade da comunidade de usuários? Lembram-se do e-Social? Ele não era Software Livre, não é uma uma peça central da vida pública nacional (é importante, mas ninguém morre se ele parar) e mesmo assim foi um transtorno até ser consertado!

O custo do Softwarte Livre não é zero. Pode ter uma licença mais barata, mas o custo se metamorfoseia em outras componentes.

O pai da química batiza o fato largamente ignorado número nove:
Software Livre não é gratuito, é livre. Ele é melhor porque é livre, não porque é de graça. Podermos usar um SL de graça não implica que não teremos que investir em treinamento, instalação, suporte, melhorias. O custo diminui de um lado, mas persiste em todos os outros aspectos. Menores custos, talvez, mas nunca, jamais, custo zero.

Ai, ai...

Bom, chegamos à tal petição. Ela diz:
Petição ao Governo Federal para NÃO trocar Linux por Windows(4)
Só isso. Tem ali uma explicação bem pequena:
O uso de Linux no governo traz benefícios diretos para a população como economia em licenças (1) e redução dos problemas com segurança da informação(2). O Linux é Software Livre e isto significa que é construído por toda uma comunidade de desenvolvedores em todo o mundo, o que permite sua crescente evolução como a presente nos celulares atualmente(3).

Leia informe de compra: link.

Leia documento de apoio de compra: link.
Vamos lá:
  1. Acabamos de ver que isso não é necessariamente verdade, logo esse ponto é frágil;
  2. Qual é a causa desses problemas? Você sabia que dá para comprar bases de dados de quase tudo até em banca de camelô? E a culpa é do Windows???? Não, né? E os escândalos de gente fraudando o sistema por dentro? Seria diferente se fosse Mac, Android, Windows ou Ubuntu???
  3. Ahn?? Que diabos isso tem a ver??
E finalmente o 4: de onde ele tirou isso? Onde há a declaração de que será feita a volta de uma migração? Que migração foi essa que eu perdi?
A Receita Federal e o Banco Central, por exemplo, não usam software livre em seus sistemas. Também não há dados claros quanto à economia gerada aos cofres públicos. Sabemos que, até 2008, a estimativa era a de que R$ 150 milhões haviam sido economizados. Outro número diz que foram R$ 500 milhões até 2010. Também fica difícil estimarmos em dados qual plataforma é mais segura.

Planejamento cancela Expresso do Serpro e adota e-mail da Microsoft - 22/09/2015


O fato largamente ignorado número 10:
O Governo Federal tem por objetivo atuar para melhorar nossa vida, não usar um marca de produto, e ele não é UMA pessoa, mas uma instituição. Logo, o presidente da vez não tem nada a ver com isso - vide o subtítulo desta seção.
Eu mantenho um blog chamado Solução em Aberto, dedicado a mostrar como SL é melhor que Software Proprietário e por que é uma boa escolha. Eu acredito em SL, mas como pagador de impostos me interessa que o Governo entregue o que promete. Não me interessa se ele vai fazer isso pelo caminho A ou B, desde que 1) faça 2)  respeitando a Constituição.

Qualquer um que opte por forçar a mão e tomar uma decisão por ideologia, porque quer, porque sim, está agindo contra o país. Essa petição faz uma defesa tão pobre e rasa do assunto que não há como um cidadão, cioso de suas obrigações e responsabilidade, querer assiná-la.

Eu assinaria se fosse melhor, se fosse mais inteligente. Mas assim? Pelamordedeus...